About Betty’s Boob (ou Sobre o seio da Betty) é uma HQ que aborda um tema difícil, o câncer de mama, por um caminho inesperado: o da fantasia, do humor e da celebração da vida após a dor.
A história começa de forma simbólica e impactante. Betty
acorda em uma cama de hospital depois de sonhar com caranguejos arrancando seu
seio esquerdo, caranguejos que funcionam como metáfora visual do câncer.
Diagnosticada com câncer de mama, ela passou por meses de quimioterapia e por
uma mastectomia, despertando agora em um “novo corpo”.
Desorientada e assustada, Betty acorda sem cabelo, com pontos doloridos e a ausência física do seio. Em uma sequência quase sem palavras, que remete ao cinema mudo, ela afasta uma enfermeira com o penico do hospital e exige explicações: quer seu seio de volta, com direito ao brilhante piercing no mamilo. O pedido é atendido e o seio retorna embalado em um delicado pacote de presente. O tom da obra se estabelece aí: provocador, estranho, simbólico e surpreendentemente leve.
Esse humor peculiar também se reflete na reação de seu companheiro, um homem incapaz de lidar com a mastectomia sem desmaiar. Ele surge como uma figura ao mesmo tempo triste e patética, mas que não ocupa o centro da narrativa. About Betty’s Boob, título que brinca com a icônica personagem Betty Boop dos anos 1930, não é uma HQ sobre o tratamento do câncer em si, nem sobre um grande drama médico. Escrita por Vero Cazot e ilustrada por Julie Rocheleau, a obra fala principalmente do depois: da transformação, das inseguranças e da reconstrução da feminilidade e da identidade.
Fantasia acima do realismo
A HQ trabalha com uma realidade exagerada e cartunesca,
deixando claro que não pretende ser um guia realista para quem passa por essa
experiência. Aqui, a verossimilhança importa menos do que o espírito da
narrativa. Criticar cenas como a perseguição da peruca fugitiva por serem
“irreais” é ignorar tanto o humor quanto o simbolismo: para quem perde o cabelo
durante a quimioterapia, a peruca se torna mais um elemento a controlar, vigiar
e negociar com o próprio corpo.
Trata-se de uma HQ com muitos quadros sem falas e apenas
breves diálogos pontuais. Essa escolha narrativa valoriza a linguagem visual e
convida o leitor a sentir, mais do que a ler. Betty aproveita a chance de
sobreviver ao câncer para se apegar à alegria de viver, algo que muitas pessoas
“saudáveis” ao seu redor parecem incapazes de acessar.
Do luto às possibilidades
Cazot e Rocheleau deslocam rapidamente a narrativa da perda,
do seio, do parceiro e do emprego, para as possibilidades que se abrem diante
de Betty. Entre uma vendedora espalhafatosa de próteses mamárias e um chefe
autoritário incapaz de tolerar assimetrias, Betty percebe que já não cabe na
vida que levava ou que aquela vida já não caiba mais nela.
Se antes ela usava uma maçã para preencher o sutiã vazio,
agora passa a mordê-la, literal e simbolicamente. A brincadeira com o próprio
corpo ganha novos significados quando Betty encontra, na corda bamba, uma nova
forma de existir. Em vez de esconder ou substituir a ausência, ela a exibe,
transforma-a em espetáculo e afirmando sua presença.
Arte, leveza e contraste
O traço cartunesco de Julie Rocheleau, exagerado de
propósito, flerta constantemente com o humor. Em muitos momentos, a obra brinca
com o leitor em um tom leve e quase irônico. Esse estilo confere identidade
própria à HQ, embora em alguns trechos suavize demais o impacto emocional da
história. Ainda assim, esse equilíbrio instável impede que a narrativa se torne
excessivamente sombria e é justamente nessa tensão que About Betty’s Boob
encontra sua força.

Parentêses - Quem é Betty Boop?
A todo momento esta edição faz alusão à personagem Betty Boop, criada nos anos 1930, símbolo de mulher moderna, liberdade, sensualidade e irreverência. Ícone da cultura pop, ela é conhecida por seu visual marcante: vestido curto, liga na perna e cachinhos no cabelo.
Foi criada por Max Fleischer e desenhada por Grim Natwick
aparecendo pela primeira vez na série de curtas de animação Talkartoons. Mas ficou
famosa mesmo quando interpretou Boop-Oop-a Doop-Girl, de Helen Kane, e, enfim,
entrou para a história, participando de mais de 100 animações.
Uma leitura necessária
No conjunto, About Betty’s Boob é uma leitura encantadora e
necessária. Oferece esperança a quem enfrenta situações semelhantes e aborda
temas universais como corpo, identidade, rejeição e reinvenção. A pergunta ao
leitor é simples: você busca uma história reflexiva, que lida abertamente com o
corpo humano, a nudez e a reconstrução da autoestima? Ou prefere uma leitura
divertida, visual e praticamente sem texto? Aqui, as duas coisas caminham
juntas.
É uma obra que faz chorar e sorrir. A mensagem é positiva,
sem jamais minimizar a seriedade do tema. As lutas de Betty são reais, mesmo
quando envoltas em situações cômicas e fantásticas, criando reações complexas e
profundas em quem lê.
Sobre a obra e as autoras
About Betty’s Boob foi publicada originalmente pela editora
francesa Casterman, em 2017, e ganhou edição em inglês em 2018 pelo selo
Archaia, da BOOM! Studios. O livro tem 192 páginas coloridas.
A roteirista Véronique “Véro” Cazot é francesa e conhecida por histórias que exploram temas humanos e sociais com profundidade, humor e poesia. Um de seus primeiros trabalhos foi Et toi, quand est-ce que tu t’y mets? (E você, quando vai ter?), que aborda a pressão social sobre a decisão de ter ou não filhos.
Julie Rocheleau é uma artista canadense, nascida em Montreal.
Formada em animação tradicional, ela trabalhou por cerca de uma década como
designer de personagens e storyboard em estúdios de animação antes de se
dedicar integralmente aos quadrinhos, bagagem que se reflete diretamente na
expressividade e no dinamismo de sua arte em About Betty’s Boob.
Imagens das autoras: Dupuis e Dargaud














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