About Betty’s Boob: humor, fantasia e reinvenção após o câncer

Leonardo Fraga
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About Betty’s Boob (ou Sobre o seio da Betty) é uma HQ que aborda um tema difícil, o câncer de mama, por um caminho inesperado: o da fantasia, do humor e da celebração da vida após a dor.

A história começa de forma simbólica e impactante. Betty acorda em uma cama de hospital depois de sonhar com caranguejos arrancando seu seio esquerdo, caranguejos que funcionam como metáfora visual do câncer. Diagnosticada com câncer de mama, ela passou por meses de quimioterapia e por uma mastectomia, despertando agora em um “novo corpo”.



Desorientada e assustada, Betty acorda sem cabelo, com pontos doloridos e a ausência física do seio. Em uma sequência quase sem palavras, que remete ao cinema mudo, ela afasta uma enfermeira com o penico do hospital e exige explicações: quer seu seio de volta, com direito ao brilhante piercing no mamilo. O pedido é atendido e o seio retorna embalado em um delicado pacote de presente. O tom da obra se estabelece aí: provocador, estranho, simbólico e surpreendentemente leve.



Esse humor peculiar também se reflete na reação de seu companheiro, um homem incapaz de lidar com a mastectomia sem desmaiar. Ele surge como uma figura ao mesmo tempo triste e patética, mas que não ocupa o centro da narrativa. About Betty’s Boob, título que brinca com a icônica personagem Betty Boop dos anos 1930, não é uma HQ sobre o tratamento do câncer em si, nem sobre um grande drama médico. Escrita por Vero Cazot e ilustrada por Julie Rocheleau, a obra fala principalmente do depois: da transformação, das inseguranças e da reconstrução da feminilidade e da identidade.



Fantasia acima do realismo

A HQ trabalha com uma realidade exagerada e cartunesca, deixando claro que não pretende ser um guia realista para quem passa por essa experiência. Aqui, a verossimilhança importa menos do que o espírito da narrativa. Criticar cenas como a perseguição da peruca fugitiva por serem “irreais” é ignorar tanto o humor quanto o simbolismo: para quem perde o cabelo durante a quimioterapia, a peruca se torna mais um elemento a controlar, vigiar e negociar com o próprio corpo.

Trata-se de uma HQ com muitos quadros sem falas e apenas breves diálogos pontuais. Essa escolha narrativa valoriza a linguagem visual e convida o leitor a sentir, mais do que a ler. Betty aproveita a chance de sobreviver ao câncer para se apegar à alegria de viver, algo que muitas pessoas “saudáveis” ao seu redor parecem incapazes de acessar.



Do luto às possibilidades

Cazot e Rocheleau deslocam rapidamente a narrativa da perda, do seio, do parceiro e do emprego, para as possibilidades que se abrem diante de Betty. Entre uma vendedora espalhafatosa de próteses mamárias e um chefe autoritário incapaz de tolerar assimetrias, Betty percebe que já não cabe na vida que levava ou que aquela vida já não caiba mais nela.

Se antes ela usava uma maçã para preencher o sutiã vazio, agora passa a mordê-la, literal e simbolicamente. A brincadeira com o próprio corpo ganha novos significados quando Betty encontra, na corda bamba, uma nova forma de existir. Em vez de esconder ou substituir a ausência, ela a exibe, transforma-a em espetáculo e afirmando sua presença.



Arte, leveza e contraste

O traço cartunesco de Julie Rocheleau, exagerado de propósito, flerta constantemente com o humor. Em muitos momentos, a obra brinca com o leitor em um tom leve e quase irônico. Esse estilo confere identidade própria à HQ, embora em alguns trechos suavize demais o impacto emocional da história. Ainda assim, esse equilíbrio instável impede que a narrativa se torne excessivamente sombria e é justamente nessa tensão que About Betty’s Boob encontra sua força.





Parentêses - Quem é Betty Boop?

A todo momento esta edição faz alusão à personagem Betty Boop, criada nos anos 1930, símbolo de mulher moderna, liberdade, sensualidade e irreverência. Ícone da cultura pop, ela é conhecida por seu visual marcante: vestido curto, liga na perna e cachinhos no cabelo.

Foi criada por Max Fleischer e desenhada por Grim Natwick aparecendo pela primeira vez na série de curtas de animação Talkartoons. Mas ficou famosa mesmo quando interpretou Boop-Oop-a Doop-Girl, de Helen Kane, e, enfim, entrou para a história, participando de mais de 100 animações.


Uma leitura necessária

No conjunto, About Betty’s Boob é uma leitura encantadora e necessária. Oferece esperança a quem enfrenta situações semelhantes e aborda temas universais como corpo, identidade, rejeição e reinvenção. A pergunta ao leitor é simples: você busca uma história reflexiva, que lida abertamente com o corpo humano, a nudez e a reconstrução da autoestima? Ou prefere uma leitura divertida, visual e praticamente sem texto? Aqui, as duas coisas caminham juntas.

É uma obra que faz chorar e sorrir. A mensagem é positiva, sem jamais minimizar a seriedade do tema. As lutas de Betty são reais, mesmo quando envoltas em situações cômicas e fantásticas, criando reações complexas e profundas em quem lê.




Sobre a obra e as autoras

About Betty’s Boob foi publicada originalmente pela editora francesa Casterman, em 2017, e ganhou edição em inglês em 2018 pelo selo Archaia, da BOOM! Studios. O livro tem 192 páginas coloridas.

A roteirista Véronique “Véro” Cazot é francesa e conhecida por histórias que exploram temas humanos e sociais com profundidade, humor e poesia. Um de seus primeiros trabalhos foi Et toi, quand est-ce que tu t’y mets? (E você, quando vai ter?), que aborda a pressão social sobre a decisão de ter ou não filhos.








Julie Rocheleau é uma artista canadense, nascida em Montreal. Formada em animação tradicional, ela trabalhou por cerca de uma década como designer de personagens e storyboard em estúdios de animação antes de se dedicar integralmente aos quadrinhos, bagagem que se reflete diretamente na expressividade e no dinamismo de sua arte em About Betty’s Boob.









Imagens das autoras: Dupuis e Dargaud

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